
RIO (parabéns, amigo velho) – Vinte anos atrás, fui buscar esse moço aí na Senna Import, na Lapa. Alemão nato, fabricado em Ingolstadt em abril daquele ano, veio na primeira leva de A3 para o Brasil. Eu tinha vendido meu Twingo (que já busquei de volta) e seria o primeiro carro caro da minha vida. Lembro que um dia o Cleber Machado apareceu com um A4 num restaurante que a gente ia de vez em quando e eu falei para ele: se você tem um Audi, eu vou ter também! Piada que perdura até hoje.
O fato é que eu tinha umas economias e depois de pensar nas alternativas fui ver um Vectra. Custava 37 mil reais, algo assim, e um amigo que se dizia brother do dono de uma revenda no Butantã me garantiu que iria conseguir um baita desconto, e quando fui ver o carro o desconto era de 3%. Achei uma merda de desconto e desisti.
Naquele ano, o dólar e o real estavam praticamente iguais, a cotação era de um para um. Não lembro bem qual foi a mágica. Então soube, lendo algum jornal ou revista, que o A3 seria vendido no Brasil ao preço de 40 mil dólares. Dava um pouco mais que o diabo do Vectra. Quer saber?, falei para mim mesmo. Vou comprar um desses.
E liguei para o Bira, o cara que tocava os negócios da Senna Import — a representante da Audi no Brasil. Encomendei direto com eles. O primeiro lote do modelo de entrada da Audi veio da Alemanha numa configuração padrão: teto solar, duas portas, airbag, ar-condicionado, vidro elétrico, bancos de couro, toca-fitas, as coisas de sempre. Só dava para escolher entre turbo e aspirado. Comprei o aspirado, porque o outro era muito caro e minha grana estava contadinha.
Demorou um pouco para chegar, até que me ligaram para marcar a entrega. E foi num dia 16 de julho de 1997 que sentei num Audi pela primeira vez na vida. Fui buscá-lo num galpão na Lapa. A primeira coisa que fiz foi colar uma estrela do PT no para-brisa. Está lá até hoje, intacta.
Nessas duas décadas, nunca nos envolvemos em acidentes, nem tivemos problemas mecânicos sérios. Uma vez peguei uma guia para desviar de uma senhorinha que atravessou a rua sem olhar, depois de uma curva. Arrebentei uma roda e a suspensão dianteira esquerda, mas o seguro pagou. Fiz o reparo numa concessionária, porque com esse tipo de coisa não dá para brincar. Já trocamos a embreagem umas duas vezes, pneus e bateria, claro, e uns dois anos atrás enfrentamos um problema num fusível maluco que não permitia que a ventoinha fosse acionada.
Fora isso, nada.
Do ponto de vista estético, tive de pintar os para-choques algumas vezes e o capô. Além de comprar uma grade nova, porque roubaram duas vezes a dita cuja. Perdi uma placa dianteira numa enchente no Guarujá, também. A atual está meio amassada, já é hora de trocar de novo. A traseira é do modelo antigo, ainda.
Ah, e trocamos a forração do teto, também, porque depois de uns 12 anos de labuta o tecido descolou do teto — temperaturas altas no Brasil, sabe como é. Tive de fazer a nova com tecido não original, mas um dia ainda vou encontrar esse teto no padrão antigo. Ô, se vou. No mais, nunca colocamos nada ali que não tivesse as quatro argolas — a disqueteira, para seis CDs, comprei numa revenda na Alemanha, perto de Nürburgring. Ou teria sido perto de Hockenheim? Não lembro. Mas foi lá.
Em 2003, visitei a fábrica da Audi em Ingolstadt. Conheci a linha de produção com seus incríveis robôs, a área de pintura, as prensas, a estamparia, o local onde costuravam os tecidos, acompanhei os detalhes da montagem, conversei com operários. Cada um desses, me disse um deles apontando para a fila de carros passando sobre nossas cabeças, tem uma pastinha na qual tudo que foi feito na sua produção está anotado, como o nome de quem instalou uma lâmpada, de quem experimentou o rádio, de quem checou a calibragem dos pneus, de quem tocou a buzina primeiro. Se você tiver o número do chassi do seu carro, prosseguiu, posso mostrar para você.
Não tinha o número do chassi do meu carro na cabeça, obviamente, mas foi reconfortante saber que as primeiras horas de vida do meu carro estavam registradas numa pasta devidamente arquivada naquele local quase sagrado para mim — para quem não sabe, a Audi era Auto Union, e a Auto Union fazia DKW. Fritz ligou o motor pela primeira vez. Hans acendeu o farol baixo e o farol alto. Michael checou o funcionamento do acendedor. Frida colocou o tapete no porta-malas. Berta passou um paninho no painel.
Vinte anos amanhã.
Quando o estacionei na nova garagem, hoje, ele marcava curiosos 144.444 km no hodômetro. O display digital que fica no centro do painel já tem algumas pequenas falhas nas luzinhas e um dia me disseram que isso é comum nos Audis daqueles tempos distantes do final do século passado. Não me importo muito com esses pequenos defeitinhos. São dele. Ele não é mais uma criança.
Foi nesse carro que meus dois moleques saíram da maternidade. Foi nele que vivi muitas de minhas alegrias, angústias, tristezas, paixões, amores, desamores, idas, vindas, encontros, despedidas. Nele escutei minhas músicas, ouvi as notícias, fiquei em silêncio, falei sozinho. Quantas horas passei dentro desse carro? Quantas vezes acionei o botãozinho da chave para destrancar e trancar a porta? Quanto da minha vida está lá dentro?
São vinte anos, não vinte dias. Sou amigo dos meus carros. Trouxe esse velho companheiro para o Rio, viemos de madrugada pela Dutra ensimesmados, pensando no que esta nova vida nos reserva, em território estranho e quase desconhecido.
Mas temos um ao outro. Por isso, seguiremos juntos, para sempre.
Danke, companheiro.
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